não me entendo
Sinceramente, não me entendo. Não chego a conclusão alguma sobre isto que sinto. Batalho todas a noites com o travesseiro moído de insónias enquanto a minha mulher dorme a meu lado na sua paz inocente. Observo o seu sono, noite após noite, e encanto-me: a quietude do corpo, o cabelo espalhado, as pernas nuas espreitando dos lençóis numa lascívia ingénua, as mãos repousadas perto do rosto. Os lábios entreabertos como que à procura de um beijo, revelando a doce brancura da dentição. Orelhas pequenas, nariz atrevido, pequeníssimo. É bonita a minha mulher, e isto deveria ser maior que todas as razões para as minhas insónias, às voltas no colchão, sem me entender. Sem chegar ao porquê que isto aconteceu. Viro-me para o outro lado, talvez envergonhado porque o pensamento
- Inês
vai contra tudo o que construí até hoje; o meu filho dorme também o seu sono inocente no quarto ao lado, embarrilado pelos legos, pelos carros em miniatura, livros e puzzles, jogos, dvds e toda essa nova tralha com que os miúdos de hoje se divertem por um dia para no outro quererem outras bugigangas semelhantes. O meu filho
- Pai, queres brincar comigo?
e eu magicando-lhe no rosto outras parecenças que não as da minha mulher, eu magicando
- Inês
enquanto ele espalha um enorme saco de peças para construir um avião, uma nave espacial, brincando afinal sozinho porque eu longe, com uma peça azul na mão e o pensamento num outro espaço, numa realidade que não a minha, o meu pensamento chamando
- Inês
chamando por aquilo que não é, o meu pensamento acovarda-me chorando silencioso sobre o meu próprio ombro, de resto com imensa piedade de mim mesmo, pobre coitado de mim; isto é uma pieguice pegada, um nome, um nome apenas que me desliga do mundo em que vivo
(como se regressasse à adolescência, com as gangas roçadas e fralda solta, procurando a novidade nas raparigas que se aproximavam de mim
- Rita
explorando com a mão a descoberta de um seio imberbe, sonhando molhado com o nome
- Rita
ou seja agora
- Inês)
virado para o lado de lá da cama, virando costas ao corpo repousado da minha mulher, com vergonha, eu com vergonha de pedir
- Queres brincar comigo?
e a peça azul colocada na mão como por acaso, olhando nas feições do meu filho uma outra ascendência, não a da minha mulher, mas a de um nome
- Inês
e no entanto é a vozinha dele que me apela, desembocada numa decepção
- Pai brincas ou não comigo?
e eu virando para o outro lado, sem largar o estranho objecto azul; eu com vergonha do meu filho cujas feições as da minha mulher.
As pernas da minha mulher espreitam do lençol numa inocente lascívia, os lábios entreabertos na procura de um beijo, e se queres um beijo é um beijo que te dou, Inês, beijo-te a boca com a sofreguidão de um aflito, num sufoco de náufrago, porque se me afundo é contigo que afundo tudo, os legos, o lençol que encobre lascivo as pernas da minha mulher, as feições desfiguradas do meu filho
(acordando em sobressalto porque sonhava que o meu filho)
e agora porque me apareceste assim, vinda não sei de onde e para quê, agarra nesta peça azul com que construo o avião para o meu filho e sê tu a ver nele as feições que gostarias que um filho teu
(sonhava que o meu filho sem feições, sem rosto, desconsoladamente decepcionado porque eu de costas voltadas, o meu filho sem perceber
- Pai então já não brincas comigo?)
um filho teu ditado pelos meus genes, mas não é este, este não, vieste para mo destruíres, vieste como um vírus que se instala, ou uma droga que ferve nas minhas veias nestas noites de insónia, com o pensamento às voltas na cama, moendo o travesseiro com o teu nome
- Inês
molhando-me os sonhos com as tuas pernas de pérfida lascívia, a tua boca escancarada sobre o meu rosto arrancando-me os beijos que ainda não soube colocar em ti, colocar-me em ti
- Pai brincas ou não?
e ter um filho cujas feições morrem no azul de uma peça com que adormeço, como o náufrago se agarra a uma coisa qualquer enquanto se deixa ir para o mais profundo do abismo
- Inês
Inês o caralhinho a sete, sabes? Sinto-me tão cansado com esta luta pateta… Chegar-me-ia
(chegar-te-ia)
consumir esta coisa que me amedronta com um simples abraço? Sem que me mordas as orelhas ou afundes os teus dedos dentro das minhas calças
(a fralda de fora, e as gangas roçadas, onde estão as pernas, que é feito dos braços, Rita?)
num abraço longo para me apaziguar, libertador, sentir-me por inteiro e não dividido, um abraço que se impusesse como o derradeiro? Que posso fazer, que devo fazer? A sério que não sei, que não me entendo.
-
© José Alexandre Ramos
Comentários
F A B U L O S O!!!!
Abraço
Bem lá do fundo e bem honesto.
Beijo meu
putty
Obrigada por partilhar Nóbel que temos na estante
maestrina, Brain, Putty Cat: obrigado pelas vossas palavras, são um mimo que não devo merecer assim tanto...