coreografia dos gestos

azul pacífico, por Luis Lobo Henriques
em 1000 imagens

Fizeste-me descarrilar, Daniela. Não que me preocupe o jogo inocente do flirt, nem que venha daí quaisquer más consequências se for apenas a inocência que tome as rédeas. Sempre me encantou a sedução, seja eu o seduzido ou o sedutor, pese embora que prefira na maior parte das vezes estar na primeira posição. Gosto de ser levado, gosto que me tomem a mão. Toma-me a mão, então. Leva-me. Por onde e como preferires. Da forma como quiseres.

É bonito observar que os gestos de ambos conjugam como uma coreografia de cumplicidades, e a verdade é que me levas já cego com o teu olhar de pássaro sereno - um olhar macio, posso dizer, como as plumas de uma ave assim pequena e delicada. O teu corpo aveludado como o leite, tão ainda aquém das carnes maduras de outras mulheres que me abordam, encurraladas em preconceitos e complicações na cabeça. A tua boca apetece, os teus lábios borbotões de água fresca mal contida debaixo da terra, perto de jorrar num beijo de delícia e profundo ardor libidinoso. As mãos muito tácteis, donas de uma perfeição de ternuras, dedos finos, brancos, frágeis.

Sempre gostei da fragilidade ainda que as rotinas venham contrariar as primeiras impressões. E por isso o pouco encanto pela maturidade das mulheres que me abordam, querendo encurralar-me nos seus preconceitos, complicar-me a cabeça com as suas deambulações sentimentais. São frágeis e não admitem sê-lo. Mas como serás tu então depois da inocência, como vais lidar com os percalços mais espinhosos, com os confrontos de personalidade? Como ver-me-ias um dia descarrilar por outro olhar que não fosse o teu, como agora?

Medonho não é o sonho mas as expectativas que se criam. O mundo poderia ficar sempre assim, nesta ternura pura do encantamento, do enamoramento. Medonho é o que me espera, as possibilidades de quereres que volte a colocar-me nos carris da conformidade, que seja afinal tudo o mesmo de sempre: esse terrível engano que erode de azedas tribulações muitos amantes. Enfim, a normalidade, a rotina. O que destrói efectivamente os afectos quando, descansados do primeiro fogo, o flirt acaba e só nos sobre os dois, descobertos num pavor de solidões individuais.

Vou fugir, vou fazer de conta que não é nada? Fingir que não quero o teu corpo, os teus lábios, as tuas mãos apertando, apertando? Negar a paixão, essa deliciosa dor que em vez de nos afugentar ainda nos faz correr mais ansiosos ao encontro de maior intensidade? Não posso negar, não sei contradizer.

Dizem as pessoas resignadas que assim é a vida. Mas eu luto tanto contra a resignação, Daniela, os chavões que desaprovo ou antipatizo. Não vou seguir um caminho apenas porque um dedo para lá me aponta. Questionar sempre: é enfim a base do fracasso de paixões e amores que não conseguiram dar sequer o primeiro passo, mas fundamental para quem como eu descarrila e não quer que um pequeno acidente se transforme na hecatombe. Exagero na eloquência, dirás. Que coloco a fatalidade em coisas tão simples. Poderás ter razão, afinal tudo advém da condição de apaixonado. Mas não acredito na máxima de viver um dia de cada vez. Ponderar pode precaver-nos das feridas, das lágrimas, do abandono.

Perdoas-me, Daniela? Se for só um flirt, um beijo, uma noite? Para nos acalmar, para provarmo-nos e sentirmo-nos. Para que, pelo menos, toda esta coreografia bonita dos gestos não seja em vão.

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