chá amargo (post de manutenção)


I was so drunk last night I didn't even undress for bed
And the pin in my hair was still stuck in my head
The Fiery Furnaces, I’m in no mood - Bitter Tea (2006)


Sem dúvida que é o outono que chove, uma vez que sombras na calçada, a velhice a amarelecer as árvores, e eu enganando a temperatura do escritório com camisolinha de meia-estação e o casaco de desporto de trazer por casa vestidos, revezando o traseiro entre a poltrona virada para as estantes dos livros e a cadeira da secretária onde um monitor de morada aberta para a rede labiríntica e casual da auto-estrada da informação,

(e dizer apenas a internet não bastaria?, para quê as fitas, a maquilhagem, o enfeite?)

mais a música estonteante dos Fiery Furnaces a apanhar o ritmo das gotas de chuva desfeitas no chão.

Por isso de novo aqui a preencher os espaços vazios do calendário que ninguém dá conta, augando (ougando?) por dois ou três pares de olhos que me leiam

(só dois ou três pares de olhos de facto, para quê mais, não sou guloso, vinde cá ler-me na diagonal com sorrisos de condescendência, umas cinco linhas basta, e podeis regressar aos outros que vos imploram mais sedentos que eu, carregados de comichão por saberem se são ou não escritores, poetas, críticos, ou que lhes der na gana… Não é necessário apontar o quanto gostastes na caixa de comentários, não é necessário citar-me em outros sítios com links mal feitos ou um copy-paste a ignorar itálicos e bolds do original; e muito menos preciso que venhais agraciar-me com as tentadoras propostas de publicação de um livro com custos à minha conta – para quê?, se eu não acredito nos outros que escrevem melhor que eu, quanto mais em mim, se o que escrevo é nada, apenas palavras seguindo outras palavras sem traço ou mestria, palavras que vou ressuscitando consoante as estações e as sombras, numa sequência que os Fiery Furnaces agora me inspiram e aproveitando a cadência da chuva caminhando pelo ar e esbatendo-se bêbeda contra o vidro das janelas e as pedras da calçada);

é só um pequeno mimo que vos peço, dois ou três pares de olhos que venham ler-me num sorriso condescendente, talvez digais “passei por aqui”, como quem decide visitar um amigo ou parente a quem não se fala e vê há anos, e ao chegar à casa onde mora a campainha não obedece, o batente enferrujado pelo tempo, as janelas corridas e a dúvida pairando: se calhar não está, se calhar já cá nem vive. Rasga-se uma folha de papel da agenda

(desculpa: agenda?! Quem usa isso nos tempos que correm? Hoje só formatos digitais, pelo que, se tiveres sorte, uma sms ou um e-mail, os dedos maiores que as teclas do aparelho, raios partam o telemóvel que é r e não s, quem inventou isto devia)

e deixar uma mensagem na caixa de correio a dizer

(caixa de correio electrónico ou de sms, entenda-se. Já agora, com tanta tecnologia, quem é que visita parentes ou amigos que não se vê há anos tendo o seu número do telemóvel, ou o endereço de e-mail… não faz sentido. Por isso, fica-te pela ultrapassada folha arrancada à agenda, ou um pedaço de papel qualquer e a sorte de teres algo que escreva para deixares um bilhete que diga simplesmente)

- Passei por aqui.

Porque é bem possível que não volte cá tão cedo, apesar do pardacento das tardes e da cadência da chuva, mais o recente livro do lobo antunes, a velhice amarela com que o outono veste as árvores, tudo isso incitando-me à escrita, e eu batendo a mesma tecla do será que sou capaz, será que ainda tenho o engenho de outros tempos, vem a idade, vêm as preocupações acumuladas, o país

(enfim, o país, nem vale a pena ires por aí, que te fica mal, bem pior do não seres capaz)

o país num compasso de espera, a exigência no trabalho, a atenção que a família te cobra, e tu sem paciência como antes, a paciência esgota-se mais rápido que o próprio tempo, certamente compreend…

(estás a dirigir-te para a segunda pessoa do singular ou do plural, decide-te)

…erão, certamente compreenderão.

São agora os Pink Floyd numa sua fase sorumbática que vieram ao acaso nos ficheiros mp3 depois dos Fiery Furnaces, a chuva abrandou

(terá parado?),

e ainda que as sombras se tenham acentuado, o copo de uísque

(elemento que não tinha acrescentado no princípio, mas ainda a tempo de ser entendido como um dos mobiles para este post de manutenção)

já vazio, a vontade de escrever começa enfim esmorecendo, e vou deixar ficar isto a acumular espaços vazios no calendário que ninguém dá conta.

Hoje é domingo. Podia dizer que o princípio de outro mundo para mim em alguns aspectos, mas nem é isso. Apenas manutenção. Ou melhor, é apenas rotina, como dizem os médicos quando tu cheio de medo

- Tantos exames para quê doutor?

ou os agentes da autoridade que te mandam parar o automóvel na berma da estrada para uma breve inspecção:

- Tudo em ordem, pode seguir.

Eu sigo. Nisso podeis crer: sigo sempre, mesmo não sabendo bem para onde.

Comentários

Anónimo disse…
eu também passei por aqui :)
(sorriso não condescendente, mas sincero, de pequenas cumplicidades que se escapam por esses espaços em branco)
Teresa Brandão disse…
eu só passei hoje, não chove e as árvores já nem têm folhas...mas que gosto de te ler, gosto. Que fazer?
Anónimo disse…
Primeiro - é um belo delírio.
segundo - Fiery Furnaces???? Pink Floyd, isso é bom!... mas em dias assim, talvez uma coisa mais forte…
terceiro - passei por aqui, com certeza!
quarto - Abraço amigo.
Emap Coimbra

delírios mais velados