adágio


Vai ficar o homem de vestes rasgadas em desconsolo de pranto, esmagado ao chão de que nunca mais subirá. Os céus já só pertencem às aves, desorientadas e famintas. Está o homem de cócoras sobre os escombros daquilo que aprendeu a chamar civilização. Chora de cócoras com um corpo inerte ao colo num abraço de angústia.

As bocas em gritaria dirão: é o fim-do-mundo. Mas este mundo escaqueirado apenas recomeça sem nunca ter conhecido efemeridade. O mundo está para lá das bocas abafadas pelo assombro do seu poder, e dos medos, e das cabeças que pensam, planeiam, projectam, mandam edificar e depois destroem. O mundo nunca lhes pertenceu, apesar de terem acreditado que o dominavam, que desaparecendo eles o levavam no mesmo destino. O mundo respirou sempre à parte, sem linhas da vida traçadas nas mãos. Sim, o mundo apenas recomeça, sem acrescentar à poeira e à lama qualquer tranche de esperança que até então a humanidade julgara ser a última a perecer.

Vai ficar o homem só porque desta vez se salvam apenas os que já não podem, e palas cresceram para além das orelhas e do nariz como autênticos apêndices nas cabeças das pessoas a quem nunca mais será permitido olhar em volta. O homem fica chorando só, com as vozes e as luzes do passado plantadas na sua memória a lembrar-lhe como tudo fora e, agora, afinal.

Tudo capitulou: as sombras sobre as fontes frescas de agostos quentes, o aconchego do lar nos dezembros varridos pelas neves; as crianças em algazarra nos parques e o vento lidando no alto das árvores; as esplanadas oferecendo cerveja e as salas de concertos; as lojas, os bancos, as fábricas, as escolas e as igrejas, as câmaras municipais, os palácios governativos, os ministérios. O homem não sentirá os seus semelhantes pisando-lhe os pés, nem esbofeteando-lhe as faces ou agarrando-lhe o pescoço. Tudo o que havia dele fica na memória, sempre futura porque deixa de haver passado e presente. Tudo o que havia dele está no corpo abraçado ao sal das suas lágrimas.

Não verá o homem a cor do dinheiro, os prédios altos, aviões atravessando hemisférios, pontes ligando margens, mercados e centros oferecendo o que as pessoas não pensavam procurar. Emudeceram as sofisticadas máquinas (e as menos sofisticadas por misericórdia), voltando à sua condição de objectos, meros materiais inanimados que aspiraram um dia ser vida. Inutilidade é a sua única versão, o que resta escrito nos seus manuais de instruções. Esqueceu o homem o sofá creme de napa, os quadros nas paredes, o abat-jour antigo, os comandos remotos que davam acessos às cenas da televisão. Foram-se os tapetes de asfalto, e só para abrigo das incontroladas chuvas negras servem os automóveis parqueados sem alinhamento. Morreram as modas: vestir e calçar sem preceito, gravatas aniquiladas, saltos altos que desceram à terra batida, blasers ou paletós a servir de cobertores. Foram-se os gestos ponderados, os tiques, as formosuras, os bons modos. Não se pensa em obesidade ou anorexia. Não se pensa em comer. Não se pensa no que não há e no que se não tem. Os penteados entraram em desalinho, os lábios gretaram de sede, as unhas dos dedos farpadas de arranhar o chão.

O mundo, no longe e escuro espaço entre cada corpo celeste, permanece como planeta azul. Azul porque os mares e o sol e a luz. Porque continua a ouvir-se o planeta sussurrando a sua trajectória com os demais congéneres. E um sussurro a mais agora se pode sentir, não sei se será cósmico, mas daqui sente-se, um sussurro que suspira com o homem.

Este homem não vai ter descendência. Será só, sem poder dar filhos aos donos dos escombros. Fica só e órfão o homem que percebeu que nunca deixara de ser o menino da sua mãe: é ela a quem ainda mantém nos braços, morta de poeira e lágrimas, como se os séculos também tivessem deixado de existir.

E dizemos adeus ao homem, porque esquecemos o até já, o até logo, o até amanhã, o em breve nos veremos. Dizemos adeus sem acenar porque estamos tão cansados dos braços e das mãos e das pernas que nem sabemos se somos vivos ou se alguma vez vivemos. Dizemos adeus ao homem sem acenar pois também não é necessário. Ele não vê.

O homem dirá por fim uma oração. Vai orar pelos que foram e pelos que ficam, sós como ele agarrados a destroços, lambendo a lama de cinza e lágrimas. Dirá a última oração onde o nome de qualquer deus que seja não será lembrado.


Comentários

Anónimo disse…
muito belo...

delírios mais velados